DOCUMENTOS
SOBRE A EPIDEMIA DE CÓLERA EM SERGIPE NO SÉCULO XIX ( * )
Terezinha Alves de Oliva
Professora do
Departamento de História – UFS
Milton Barboza da Silva
Historiador e
Professor Universitário
Em
projetos diferentes, o Arquivo Público do Estado ( APES ) e alunos do Curso de História da UFS interessaram-se por documentos sobre a epidemia de cólera em
Sergipe no século XIX. Enquanto estes se depararam com documentos esparsos no
arquivo do Programa de Documentação e Pesquisa Histórica ( PDPH ), nas tarefas da disciplina Introdução à História, o APES
trabalhou com alunos de 1º e 2º graus, participantes do Projeto Arquivo-Escola,
realizando exposições sobre o mesmo tema. Neste artigo, são apresentadas
algumas considerações resultantes do trabalho que num dado momento se tornou
conjunto, pela presença dos alunos de História no APES, em busca de dados que
os fizessem entender e situa o material encontrado no PDPH.
Desde logo é necessário assinalar
que o pequeno acervo do PDPH é um conjunto
de cópias mecânicas ( xerox e microfilmes ), constituídos a partir de busca
realizada no Arquivo Nacional, na década de 70, dentro de Projeto de
Levantamento das Fontes Primárias da História de Sergipe. Em sua maioria são os
originais da Correspondência do Governo de Sergipe com os Ministérios. Nestes
documentos a cólera aparece indiretamente, a propósito de assuntos de
administração, segurança ou justiça. Já na documentação do APES, que não tem os limites daquela do PDPH, selecionou-se um corpus significativo da Correspondência
interna, recebida pelo Governo Provincial, que trata diretamente da epidemia em
seu aspecto mais visível: Mapas enviados pelos párocos com a estatística das
vítimas; Relatórios médicos contendo informações sobre a progressão da doença e
instruções profiláticas, Correspondência das Câmaras Municipais solicitando
medidas preventivas ou providência para enfrentar a epidemia.
Já se disse que a história de uma
coletividade se confunde, algumas vezes, com a história de suas epidemias ( GRMEK, 1991: 50-55 ). Mas o olhar do
historiador sobre a doença não é o olhar do médico. A ele interessa menos uma
explicação biológica das causar da epidemia e mais a resposta à questão: por
que uma epidemia se manifesta num momento preciso da história de uma
comunidade? Mirko Grmek, professor de História da Medicina e especialista em
AIDS, considera: “ Os hábitos sociais têm sem dúvida um efeito decisivo sobre o
começo e as conseqüências das epidemias. ( ...) é necessário um certo número de
condições sociais para que a epidemia tome corpo” ( Idem: 53). A cólera, por
exemplo, que aparece na história apenas no século XIX, está relacionada com a
conquista britânica da Índia, as guerras coloniais, os movimentos de população
que disto resultaram. No século XIX, cinco pandemias de cólera correram, a
partir da Índia, entre 1817 e 1896. Da terceira (1846 – 1862) destas pandemias
são as notícias coletadas aqui, por ter atingido a Província de Sergipe em dois
momentos distintos, em 1855 e em 1862 – 1863.
Os Mapas e Relatórios mostraram-se
mais completos em relação ao surto de 1862 e 1863. Ainda que preliminarmente, é
possível estabelecer certa comparação entre os dois surtos epidêmicos. O de
1865 foi uma grande tragédia. Numa população calculada por MOTT (1986) em 132.000 habitantes para 1854, dos quais 100.192
livres e 32.448 escravos, os cálculos da mortalidade chegam a 30.000 pessoas,
portanto em torno de 30% da população. É verdade que não se registrou, apesar
disso, um recuo populacional, pois, como explica SILVA (1981), índices de natalidade bastante altos teriam mantido
as cifras demográficas. Em 1856, MOTT
calcula a população em 134.124 habitantes, 101.383 livres e 32.741 escravos. A
mortalidade era principalmente infantil, mas os documentos do período destacam
as mortes de juízes, advogados, de pelo menos 18 padres e de Comandantes de
Batalhões da Guarda Nacional, que dá mostras de grande desorganização no final
da epidemia. Interessante é que tais mortes causaram surpresa, uma vez que a
expectativa, no início do surto, era de que, como narra um documento, “ a epidemia do cólera morbus só acometeria
( em Laranjeiras )a gente pobre e
escravos ( ...)”[1].
Laranjeiras, importante centro comercial escoador da produção do açúcar na zona
da Cotinguiba, teria contado 4.000 vítimas fatais da cólera no surto de 1855.
O ano da mudança da capital de São
Cristóvão para Aracaju (1855) foi crucial. Era a troca de um núcleo urbano com
de 1.500 habitantes, por um “ povoado semi-desértico” ( NUNES, 1984:90). Aracaju era, porém, um símbolo: a nova capital
deveria representar um Sergipe que procurava acertar o passo com a onda de
modernização que se estabeleci no Império a partir de meados do século. Tudo
nela estava por fazer e seria feito segundo um conceito vanguardista de
urbanização. Mas, como diz Calasans, “pobre cidade do Aracaju, nos dias tristes
e agitados de 1855!“ (CALASANS, 1992:83).
Impaludismo e tifo castigaram os seus habitantes em febres constantes, que
chegaram a ser chamadas “febres do Aracaju”. A cólera, embora não a tivesse
atingido em massa, embaraço os primeiros meses de vida da cidade. A
transferência de repartições e funcionários públicos, obrigatória, terminou
sendo morosa e difícil. Os resistentes, com ou sem razão, terminaram
justificando a posição de não se mudarem para a nova capital, por entraves
causados pela epidemia. Assim, o Juiz dos Feitos da Fazenda justifica diante do
Imperador que o mandara repreender, a negativa em transferir os serviços do
Cartório de São Cristóvão para Aracaju, porque encontrava-se “à testa de um ponto sanitário, que por
minha lembrança e esforços fora montado sem outras vistas da minha parte mais
do que socorrer a humanidade aflita”. E acrescentava: “ os estragos do cólera que foram terríveis em toda a Província no mês
de novembro, não sendo menos em dezembro, se não impossibilitaram pelo menos
muito dificultaram as comunicações até mesmo com esta capital, apesar dos
recursos do Governo da Província, o qual, tendo de remeter medicamentos para
alguns pontos, dizia às autoridades locais que mandassem portadores recebê-los
por não ter quem os conduzisse...” [2].
Em 1855 a epidemia veio do Sul para o
Norte. Ainda em setembro o Governo alertava às Câmaras Municipais que, como a
de São Cristóvão, ficavam cientes do “ futuro
cheio de calamidades que nos ameaça se porventura se houver de manifestar nesta
Província a epidemia que de presente vai vitimando os habitantes da Cidade da
Bahia “ [3].
A mesma Câmara pede ao Presidente da Província recursos para prevenir-se:
transferência do matadouro para lugar mais afastado da cidade, cuidado cm a limpeza
da praça do mercado, caiação das casas dos pobres, limpeza da Cadeia e redução
da população carcerária, construção de local adequado ao comércio de peixes.
Para remover “ tantos condutores de
infecção” [4],
a Câmara diz não dispor de recursos, mas o Governo Provincial se diz também
incapaz de socorrê-la.
Já o surto de 1862 aparece ter
encontrado a administração provincial mais preparada no sentido de cobrir
informações, de determinar instruções preventivas. Aqui a interferência do
saber médico é mais evidente, nos Relatórios e recomendações preventivas e
profiláticas. A moléstia atingia Sergipe agora em sentido contrário, pois se
anunciava em Maceió, atingindo Propriá, num movimento considerado “ contrário à rota dos ventos e condições
atmosféricas”. Os documentos revelam o estágio de conhecimento da
trajetória da epidemia: período de duração em cada município, vítimas
atingidas, fatais e não-fatais, rota geográfica do surto, meios de transmissão,
tudo faz parte do Relatório do Inspetor de Saúde Pública, Francisco Sabino
Coelho de Sampaio. Por este documento, precioso na minúcia e conceituação
médica do fenômeno, vê-se que os efeitos do segundo surto são menores. Agora,
para uma população de 200.000 habitantes, 5.300 é a mortalidade calculada.
Laranjeiras, Maroim e Rosário são os locais mais atingidos e fontes de infecção
de outras localidades, pela fuga de seus habitantes, muitos dos quais morriam
de cólera mal chegavam ao novo destino.
A que se atribui, entretanto, a menor mortalidade no surto de
1862 / 1863? Os números não devem induzir a conclusões sobre a melhoria das
condições sanitárias. O próprio Inspetor de Saúde chama a atenção para isso: “ nada teve concorrido para o melhoramento
das condições salubres dessas localidades nesse intervalo de tempo ( ... )”.
Daí conclui o médico que os resultados se explicam pela “ calma e resignação, que presidiram desta vez ao espírito da
população, da prontidão, acerto e oportunidade dos socorros públicos, do bom
senso, que igualmente os presidiu, do cuidado que teve geralmente cada
indivíduo de manifestar seus padecimentos tanto que os pressentia, e de buscar
combate-los convenientemente, etc,”.[5] “ Calma e resignação “ já
deviam estar marcando uma população acostumada a conviver com a doença e com a
morte. É fato que no mesmo período as mortes por outras epidemias às vezes
superavam as motivadas pela cólera, segundo os diagnósticos. A febre amarela,
por exemplo, vitimou em Simão Dias, no mesmo período, 235 pessoas, enquanto 120
morreram de cólera, Febre amarela, disenterias inespecíficas, sarampo, varíola,
castigavam a população ao mesmo tempo, e podiam esconder diagnósticos de
cólera. A descrição de Aracaju de 1863 pode ilustrar essa situação:
“
No Aracaju, capital da província, onde mais ou menos intensamente gira quase
sempre alguma epidemia, onde seus habitantes, principalmente os mais expostos a
privações e indigências, mais ou menos sofrem constantemente, isto por
circunstâncias locais, que subsistem e cuja indicação tenho sempre reproduzido
nos últimos relatórios, que mais parecem-me consentânes a modifica-las, e mesmo
aniquilar algumas delas, como sejam principalmente o encanamento de boa água
potável, que abasteça a cidade dela completamente privada, o calçamento das
suas ruas, a plantação aproximada de arvoredos, que produzam bastantes copa,
pela rua que corre o litoral, e o aterro de diversas baixas e buracos, que
servem de depósito prolongado às enxurradas das águas pluviais, e do que tudo
as vantagens, quando mesmo se não deixassem facilmente compreender a qualquer
espírito, acham-se com clareza explicadas naqueles relatórios, no Aracaju,
repito, reinaram desde fins de janeiro e por todo o fevereiro bronquites,
corisas, alguns pleurites e pneumonias, a isto adicionando-se, em meados de
fevereiro irritações do tubo digestivo intestinal manifestadas por cólicas,
defecções alvinas, etc”.[6]
A documentação aqui apresentada pode
dar uma mostra do que em alguma medida foram os efeitos da epidemia na
sociedade sergipana da época, agrária, escravista, açucareira. Estudando o
tráfico inter e intra-provincial de escravos no Nordeste açucareiro, Passos
Subrinho questiona o volume da participação de Sergipe no tráfico
interprovincial, geralmente tido como um dos elementos que mais desgastou o
contingente de população escrava na Província, e faz, a propósito, a seguinte
afirmação: “ ... um fator deve ter
abalado a estrutura patrimonial de
muitos proprietários de escravos – a epidemia de cólera morbus-, que atingiu a
Província a partir de outubro de 1855 e dizimou, somente na região Sul de
Sergipe mais de 4.000 escravos” ( SUBRINHO,
1989, v.IV ).
“Calma e resignação” nas palavras do
Inspetor de Saúde, podem indicar o recuo ou o controle do medo, apontando para
uma explicação que busca raízes no terreno do imaginário coletivo. DELUMEAU, na
sua História do Medo no Ocidente, listando a peste como um dos medos da
maioria, identifica nas mentalidades das sociedades européias desde a peste
negra do século XIV, comportamentos que podem ser identificados na sociedade
sergipana dos “tempos de cólera”. Assim, mostra que a chegada da epidemia
infunde um grande medo e uma sensação de impotência, que resultam em
comportamentos elencados, a grandes traços, como: a) a recusa das palavras; b) as
fugas; c) desestruturação dos elementos que construíam o cotidiano; d)
rompimento das relações pessoais; e) abandono dos costumes mais enraizados no
inconsciente coletivo; f) ausência de projetos; g) busca de culpados (DELUMEAU, 1991).
Os documentos nomeiam a epidemia
como “flagelo”, “cruento e assolador inimigo”, “hediondo e terrível flagelo”,
“o visitante asiático”, “cruel e astuto inimigo”, “mortífero e caprichoso
contágio”. Todos esses qualificativos substituem o nome “cólera” com
freqüência. Da mesma forma há relatos de fugas. Autoridades, como o juiz de
Laranjeira, que no surto de 1855 foi acusado de encerrar-se no engenho da
família sem ir à cidade, deixando-a sem os serviços de justiça; famílias
inteiras, que assustadas, fugiam dos focos de cólera, difundindo a epidemia
para outras localidades. Conforme DELUMEAU, “o tempo de peste é o da solidão
forçada”: os documentos falam do vazio das cidades, do paradeiro do comércio,
da tristeza das ruas. Não mais as festas, visitas, os encontros. Tudo é medo,
as pessoas se escondem e, principalmente, a morte se despersonaliza. O
historiador do medo mostra como na peste nada distingue a morte dos homens da
dos animais: as fontes relatam “o desregramento dos enterros”, realizados em
malhadas de mandioca, nos quintais, sempre às escondidas, fugindo à estatística
governamental e espalhando ainda mais a epidemia. Na ausência de projetos, além
do de aguardar a própria sorte ou fugir, buscam-se culpados. Até mesmo um
relatório médico refere-se à cólera como “flagelo
que os céus em sua justiça arrojaram à terra para punir-nos” [7].
Finalmente, a documentação pode
conduzir a um estudo sobre o saber médico no período. É interessante ver ao
lado de conceitos como “contágio” e “infecção”, médicos falando em “invasão”, “assalto”, “visita” e
tratarem o cólera como um ser dotado de consciência, mau, cruel, desumano,
capaz de “sanha tão desabrida” [8]. A vila de Rosário, por
exemplo, é vista pelo médico Inspetor da Saúde Pública como “um dos pontos que o cólera-morbus reservou
para nele manifestar-se de terrível catadura e saciar-se de vítimas” [9].
O olhar do historiador pode fazê-lo perscrutar, através das pistas encontradas
nas fontes, as mais variadas situações, sensações, sentimentos. O objetivo é
entender melhor as manifestações humanas e talvez compreender a permanência de
atitudes que não correspondem, aparentemente, ao que se espera de uma sociedade
urbana, medicalizada, informada, que de certo modo ainda se defronta com
epidemias com a imprevidência de quem aguardasse uma “visita”, “invasão” ou
“assalto”.
[1]-Barão
de Maroim. Ofício ao Ministro da Justiça. Aracaju, 17/12/1865. Cópia do acervo
do PDPH/UFS.
[2]- Antonio
Joaquim da Silva Gomes. Correspondência ao Imperador Pedro II. Aracaju,
14/3/1856. Cópia do acervo do PDPH/UFS.
[3]-Inácio
de Paula Madureira e outros. Ofício da Câmara de São Cristóvão ao
Vice-Presidente de Sergipe. São Cristóvão, 19/9/1855. CM, APES.
[4] -
Idem.
[5] -
Relatório do Inspetor da Saúde Pública Dr. Francisco Sabino C. de Sampaio.
Aracaju, 1864, p.10
[6] -
Idem.
[7] -
Relatório do Inspetor da Saúde Pública, cit., p.2
[8] -
Idem, p.6
[9] -
Idem, ibidem, p.8
Bibliografia
CALASANS,
J. Aracaju
e outros temas sergipanos. Aracaju, Fundesc, 1992
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente
1300-1800. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
GRMEK, Mirko, Sida: Histoire
d´une épidémie. L´Hisoire, Paris, nº 150, dez. 1991 ( Entrevista de
Daniel Bermond ).
NUNES, M.T. História
da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro. Paz e Terra: Aracaju, Secretaria
de Educação e Cultura do Estado de Sergipe /
Universidade Federal de Sergipe, 1984.
REVEL, J. e PETER, J.P. O
corpo: o homem e doente e sua história,
in Le Goff, J. História: novos
objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.141-159.
SILVA, F.C.T.da. Camponeses
e Criadores na formação social da miséria – Porto da Folha no sertão do São
Francisco ( 1820-1920). Niterói, 1981 ( Dissertação apresentada ao
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense,
Mimeo).
SUBRINHO,
J.M.dos Passos. A transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Nordeste
açucareiro. Algumas reflexões a partir do caso de Sergipe. Anais do
XVII Encontro Nacional de Economia. Fortaleza, 1989, v.IV,
( * ) Publicado
originalmente no Cadernos UFS –
História, v.2 – n.3, Editora UFS, julho / dez, 1996