quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A trajetória do Cólera Morbus em Sergipe, séc. XIX e XX - Parte II





Apesar dos dois casos registrados, oficialmente, de cólera em Sergipe, até agora, podemos assegurar que o Estado se mantém fora do ciclo epidêmico, constituindo-se numa das raras exceções entre os Estados Nordestinos. Até quando ficaremos imunes a mais uma das passagens do vibrião colérico? A que se deve tal imunidade? É uma incógnita que merece tratamento científico. É possível até que não tenhamos uma manifestação epidêmica e que o registro não venha a passar de alguns casos isolados, no entanto, o quadro sanitário básico de nosso Estado não é animador, mesmo em centros urbanos – em áreas periféricas -, o perigo de propagação é real. O sistema de abastecimento de água, em algumas regiões do Estado, é precário, aproximando-se do primitivismo, some-se a isso a desinformação nas zonas rurais e urbanas, compondo um quadro desanimador e que, certamente, compromete os esforços no sentido de se empreender uma eficaz prevenção e combate ao cólera.
Em situações como esta, cabe as autoridades governamentais, em seus vários níveis e instâncias, converterem todos os seus esforços no sentido de prevenir, conter e erradicar os sinais epidêmicos, como de resto, atestam os documentos, relatórios e denúncias em todo o mundo. À comunidade científica nacional compete a tarefa de, enquanto parte da sociedade civil organizada, velar pelo estado da população, denunciar, quando as atenções das autoridades não se fizerem atuantes, e apresentar os caminhos que sirvam de alternativas à solução das questões, como requer o caso da cólera: as várias ciência, cada um em seu campo. Assim é que resolvemos colocar a História a cumprir uma de suas tarefas: dá entendimento aos fatos, que transcorridos no tempo, podem ensinar-nos a enfrentar situações atuais.
No século XIX, pelo menos em duas décadas, o cólera grassou a Província de Sergipe: a de 50 e de 60. Podemos destacar, particularmente, aos anos de 1855 e 1863, com sendo os anos de pico da duas epidemias colérica.
Proveniente das águas infectas do Ganges, na Índia, o Cólera Morbus entrou no Brasil em 1855 e antes que chegasse à Província de Sergipe percorreu um trajeto, passando pelo Pará e Bahia ( 36.000 mortos) e Alagoas ( 19.000 mortos ). Deixou uma alta taxa de morbidade. Em Sergipe, a tragédia teve lugar em 1855 ( segundo larga comunicação entre os vigários das freguesias e os Presidentes da Província e entre estes e o Governo Imperial), como atesta o grande número de documentos existentes no Arquivo Público Estadual de Sergipe - APES.
Grassando, sobretudo, aquelas Comarcas de maior vulnerabilidade sanitária – não que houvesse alguma menos susceptível, mas protegidas por “ obra e graça “ da localização geográfica e efeitos atmosféricos-, as Comarcas de Propriá, Maroim, Laranjeiras, Aracaju e Estância, bem como seus respectivos distritos e arredores foram duramente flagelados. Em parecer dado pelo dr. Guilherme Pereira Rebelo, datado de 1859, sobre a carestia de alimentos naquele ano, declara: “ segundo cálculos aproximados, o cólera morbus fez perto de 30.000 vítimas na Província em 1855”.
Em 1856, num total de 78 mortes registradas por doenças infecto-contagiosas, apenas duas foram atribuídas ao cólera, o que não deixa de ser um dado surpreendente que, em um ano, tenhamos aproximadamente 30.000 óbitos, no outro, apenas dois! Tais dados estatísticos são fornecidos pelos Presidentes da Província, através da Inspetoria de Saúde e, como tais, são oficiais, merecendo um estudo comparativo em outra oportunidade. Certo é que a moléstia arrasou povoações física e psicologicamente, como atesta o relatório lacônico do dr. Pedro Autran da Motta Albuquerque ( Inspetor de Saúde ), em 1856, sobre o estado de salubridade da cidade de Laranjeiras: o cólera que entrou em Laranjeiras a 24 de outubro de 1855: “ se ergueu com a mortalha em uma mão, e empunhando na outra a foice da morte, encarando a humanidade como seu mais encarniçado inimigo, fazendo sua marcha sobre montões de cadáveres – o cólera morbus escolheu a cidade de Larangeiras para cobri-la com o sudário, e sepultá-la num túmulo...”
Apesar do flagelo a que foi submetida a população da Província de Sergipe nestes anos ( 1855 – 56) e do luto que se espalhava, tão subitamente, convém lembrar que a taxa de morbidade, provocada por várias outras doenças era tão alta quanto o cólera, e de efeito muito mais funesto, uma vez que a diarréia, sarampo, varíola, febre amarela, etc., atacavam, simultaneamente, por vários anos a Província, morreram 117 pessoas em 20 freguesias, de tal forma que o cólera era apenas mais uma tragédia para o povo.
De toda a documentação consultada, no período, ficou evidente a gravidade da epidemia na Comarca de Propriá, suas vilas e povoados. Naturalmente que as autoridades, tanto local quanto Provincial, davam-se conta da gravidade da epidemia, como da vulnerabilidade da região, no entanto, pouco fazia no sentido de evitar que o flagelo se abatesse novamente, pois que o cólera retorna em 1863/64. Um mapa elaborado pelo vigário Manoel Joaquim Novais com demonstrativos sobre a mortalidade das vítimas do cólera na freguesia de Propriá até 15 de fevereiro de 1856, dá conta de um total de 1.245 mortos, sendo 1.115 pessoas livres e 98 escravos.
O Presidente da Província de Sergipe Joaquim Jacinto de Mendonça faz publicar a 17 de março de 1862, “ Instruções e Medidas Sanitárias” onde se ler um conjunto de medidas de prevenção para impedir a entrada do Cólera na Província, uma vez que já se encontrava em Maceió. Entretanto, tais medidas não foram além da criação na Província de Distritos Médicos e de Comissões de Saúde com atribuições definidas, a saber: “ velar pela saúde no interior, constituir lazaretos, visitar os cemitérios para fiscalizar as inumações”. Um ano após, 1863, um Relatório do mesmo Presidente mostra a explosão do cólera na Província com 70 vítimas em um ano, em Propriá; no ano seguinte, 1864, sobe para 350, conforme dados do Inspetor de Saúde Pública, dr. Francisco Coelho de Sampaio ( 12.02.1864 )
A mesma análise feita à Comarca de Propriá poderia ser também realizada às demais de Norte a Sul, não obstante, vamos nos limitar a fornecer os números oficias de 5.308 vítimas fatais no ano de 1864, um nº razoável, pois se considerarmos apenas um ano, e que ainda poderia ser maior, caso os dados estatísticos do período fossem eficazes.

A tragédia que as abateu sobre a Província de Sergipe, contribuiu para mudar, de alguma forma, os hábitos, como o de enterrar pessoas nas Igrejas – passam a constituir os cemitérios públicos para tais fins.  

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