quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Fundamentos Sociais do Racismo

Milton Barboza da Silva
Conferência proferida na Casa de Cultura.
2010



                A proposta de discutir as fundamentações sociais do racismo, em suas múltiplas dimensões, pareceu-me apropriada, não só para assinalar a passagem do Dia Estadual de Luta da Consciência Negra ( 20 de novembro, Lei Estadual 5.497 de 23 de dezembro de 2004 ), mas, sobretudo, por estamos vivendo um momento de profundas transformações no campo do pensamento, das ciências e, sobretudo, no agir humano. Assim, esse ciclo de debates vem se sintonizar com as angústias e preocupações que se assemelham em diversos cantos do planeta.

                Foi o final do século ( XX ), ou mesmo de milênio, argumentariam algumas pessoas, que induziu a uma reflexão sobre os temas que temos discutido nesse encontro, mas que, logo ao alvorecer do novo milênio, já estaremos esquecidos dessas problemáticas: o preconceito, a xenofobia, a exclusão, entre outras. Enganam-se. Seria verdadeira, tal argumentação, se a motivação para essas reflexões e debates não fosse resultante de uma profunda e arraigada crise de fundamentação; é uma crise cujo enraizamento remonta a séculos de alimentação de um modelo que se esgota, que se tornou estéreis. Assim, não tem como passar por essa crise, sem que não tenhamos algum envolvimento, sob pena de perdermos o referencial que se está construindo  por entre os escombros que vão ficando pelo caminho.
              Ontem, o jornalista Luiz Antonio Barreto lembrava o caráter contraditório da fundamentação racista, hoje pretendo, seguindo uma linha própria de raciocínio, mostrar o quão contraditório é essa fundamentação, a base de sustentação do racismo; mostrar seu caráter de esgotamento.
                Assim, pensando em partir, vamos lembrar que a palavra racismo, no singular, não expressa o conteúdo sócio-antropológico que ela encerra, pois que não temos um tipo ideal, aos moldes de Weber, que pudesse referenciar os mais diversos tipos de racismos desenvolvidos ao longo do processo histórico. Por conseguinte, temos que pensar em racismos. É assim, no plural, pois não temos um modelo único para o racismo, nem tampouco, o racismo é uma categoria exclusiva de um povo, de um grupo, de uma etnia ou de uma opção. Dessa forma, fico bem à vontade, não só por não ser sociologicamente  possível, mas também, por conhecer o pensamento do autor da proposta desse Ciclo de Debates, o Severo D´Acelino, e sei que quando ele propõe discutir o racismo, não está pensando apenas na questão negra, mas na diversidade que encerra a palavra e o significado dos racismos.
                De início, vamos compreender a significação dos racismos. Essa palavra designa uma crença cujas características fundamentais são as seguintes:
             - crer que os seres humanos se dividem, fundamentalmente, em raças. E, como conseqüência, atribui ao fator raça uma importância antropológica decisiva;
      - atribuir às raças características imutáveis, crendo que os caracteres transmitidos hereditariamente não se restringem apenas aos traços físicos, mas também certas atitudes psicológicas e aptidões, que são as que geram as diferenças culturais visíveis;
                - crêem que existe uma hierarquia entre as raças, sendo algumas superiores às outras;
                - entender a mistura de raças como um processo de degeneração das raças “superiores”.
                Como podemos perceber, o racismo está montado em fundamentos que não se sustentam - em que pese ter quem o defenda -, quase sempre, por interesses ideológicos ou econômicos, ou ambos. Todo esse equívoco tem seu nascedouro em uma compreensão incorreta do conceito de raça, que não passa de um estereótipo cultural. O conceito de raça se formou a partir certos traços externos – cor da pele, características do pelo, traços faciais, constituição anatômica e craniana -, esses traços foram demasiadamente valorizados pelos cientistas do século XIX, e parte do século XX. A esses traços externos, sobrepuseram predisposições intelectuais e espirituais. Portanto, o racismo é produto de uma improcedente mistura de fatores externos e predisposições internas.
               Mas, afinal, existe raça ou não existe? Apesar de não haver um acordo por parte dos cientistas quanto a essa questão, existe ao menos um consenso: o racismo é um perigoso desvio da questão.
                O racismo, como sabemos, tem sua origem na xenofobia, esse é o medo do estranho, do que é desconhecido. Assim, colocado dessa forma, esse medo do estranho, seria quase natural. Mas, antes que alguns apressados saiam a dizer que estou defendendo a tese da quase naturalidade da xenofobia, adianto que, esse sentimento é inato nos animais, mas quase inato nos seres humanos, nos grupos sociais por esses constituídos, incluindo-se ai as nações. Em uma palavra, a xenofobia é uma desconfiança instintiva para o estranho ao grupo, percebido a priori, de forma quase mecânica, como um inimigo potencial. Essa xenofobia, sem dúvidas, tem haver com os instintos territoriais, mas não é, com certeza, equivalente ao racismo, pois esse não é instintivo, senão que é uma teoria.
               Portanto, aqui, creio ter desconstruído a tese segundo a qual o racismo é natural e instintivo, pois entre a reação ao estranho e a formulação de teorias racistas vai um longo trecho.
       
          Linné ( 1707 – 1778 ) e o conde de Buffon ( 1707 -  1788 ), catalogaram os seres vivos em raças, gêneros, famílias, etc. Os seres humanos não escaparam a essa catalogação. Não que esses dois tivessem se preocupado com os humanos, mas seus sucessores terminaram por criar um verdadeiro catálogo das raças  humanas.
   
             Pensando ser essa a origem do racismo, enquanto um fenômeno tipicamente histórico e cultural,  podemos destacar alguns dos responsáveis pela elaboração teórica dessa aberração sociológica: o sueco Karl Von
              À medida que o pensamento teológico ia sendo substituído pelo científico/racionalista, foram aparecendo cientistas que explicaram diferentemente o movimento humano. Por exemplo, os alemães Carl Carus ( 1789 – 1869 ) e Gustav Klem ( 1762 – 1822 ), estão entre os primeiros que introduzem o fator raça para interpretar a evolução das culturas. Quase, simultaneamente, o sueco Retzius ( 1842 – 1919 ), introduz o primeiro método científico para classificar as raças.
            Todas essas idéias racistas, ou pré-racistas, não eram difundidas apenas por cientistas isolados, mas eles contavam com o apoio de sociedades organizadas, a exemplo da Sociedade Etnológica de Paris ( 1839 ); a Sociedade Etnológica de Londres ( 1843 ). Nesse contexto, formulou-se a primeira teoria explicitamente racista, desenvolvida pelo francês Joseph Arthur, Conde de Gobineau ( 1816 – 1882 ), em seu célebre ensaio sobre as Desigualdades Humanas. Sintetizando ao máximo seu pensamento, temos:
                - existem raças superiores, dominantes, que não são senão ramos de uma mesma família, a ariana, que dão vida as formas mais brilhantes de cultura e as nações mais poderosas;
                - a decadência dessas nações e dessas culturas se deve ao fato da mestiçagem;
                - a História não é outra coisa senão um campo de batalha entre as raças.
                As teorias de Gobineau se inscreveram na herança intelectual do iluminismo, por mais estranho que pareça essa afirmação. Observadores sagazes, como George L. Mosse, não hesitaram em perceber essa relação, diz: “ é o lado obscuro do iluminismo”.
                A Gobineau  sucedeu um desfile de pensadores, não menos famosos, que contribuíram para a fundamentação teórica do racismo. Ninguém menos do que Friedrich Nietzsche, em sua “moral dos senhores”, oposta a moral dos escravos, engajou-se nas teses de Gobineau, não é a toa que alguns de seus detratores o coloca como “apóstolo do racismo”. O mesmo podemos dizer de Wagner, o mundo germânico idealizado em suas óperas está por demais sintonizado ao pensamento de Gobineau, aliás, seu amigo pessoal. Muito já se falou também de Charles Darwin, mas a verdade é que uma de suas heranças, o darwinismo social, é profundamente racista, sobretudo quando influencia o também britânico Francis Galton, cuja obra Genes Hereditários ( 1869 ), fundamentou a doutrina da Eugenia, facilmente aplicável aos interesses racistas.
                Agora, o campeão mesmo das doutrinas e teorias racista foi o liberalismo econômico. Como diz Mosse: “ temos que ter em conta que as idéias de superioridade racial não estavam, necessariamente, ligadas ao nacionalismo, mas que poderiam ser utilizada para apoiar as qualidades do liberalismo e da iniciativa privada... “.
                O racismo é filho direto das idéias positivas do século XIX. O que era apenas algumas idéias soltas, com o advento do pensamento positivista, sobretudo com o aparecimento da obra do britânico Houston S. Chamberlain, Os fundamentos do Século XX, o racismo dá um salto qualitativo, pois conferiu a este uma fundamentação filosófica.
                Bem, aparentemente, o racismo é um predicativo da cultura alemã, mas não é bem verdade, a Inglaterra, a França e os Estados Unidos se inscrevem como países de fortes tendências racistas.
                Mas, afinal, haveria sustentação para essa tese, a tese da superioridade branca? É claro que não. Essa hipótese não se sustenta, bastava ter se perguntado: se a raça branca era superior, como explicar que durante milênios a China manteve a vanguarda cultural, técnica e científica? Se se atribui aos arianos todo o gênio criativo, só alguém dotado de um cérebro de formiga poderia atribuir a Grande Muralha, as Pirâmides do Egito ou do Yucatan, ao gênio criador dos brancos, Se os germanos eram povos superiores, como explicar que durante séculos não passaram de povos rústicos que habitavam choças, eram analfabetos, etc.
                Por fim, ironicamente, o século XX, deu-nos uma rara oportunidade de verificarmos a falácia das doutrinas racistas. Digo ironicamente, pois foi nada mais nada menos que o marxismo quem terminou por nos ensinar que nenhuma doutrina monolítica, a exemplo do racismo e dele mesmo, teria supremacia sobre a história. Assim, a proximidade entre o pensamento de Bobineau e o de Marx, em um aspecto, o histórico, é tão curta quanto a distância entre meus dedos e minhas mãos. Racismo e marxismo se aproximaram tanto, no sujeito da história, que o esgotamento dos dois foi inevitável.
                Afortunadamente, vivemos em um mundo onde as idéias, essas sim, são globais e interdependentes, apesar disso, ainda temos pessoas que não creem na interculturalidade e sim em pisotear o direito fundamental da igualdade entre as pessoas. Assim, o racismo resulta em uma estupidez e a xenofobia, descabida. Existe um poema, cuja autoria não consegui detectar, que transcrevo para finalizar:
                Querido irmão branco:
                               Quando nasci era negro,
                               Quando cresci era negro,
                               Quando tomo sol, sou negro,
                               Quando tenho medo, sou negro,
Quando tenho frio, sou negro,
Quando estou doente, sou negro.

Enquanto que você, homem branco:

Quando nasceste, eras rosa,
Quando crescestes, eras branco,
Quando tomas sol, ficas vermelho,
Quando tendes frio, ficas azul,
Quando tendes medo, ficas verde,
Quando estás doente, ficas amarelo,
Quando morres, serás cinzas...


Quem é de cor?

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