quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Cólera em Sergipe - Parte I


DOCUMENTOS SOBRE A EPIDEMIA DE CÓLERA EM SERGIPE NO SÉCULO XIX ( * )

Terezinha Alves de Oliva
Professora do Departamento de História – UFS
Milton Barboza da Silva
Historiador e Professor Universitário


            Em projetos diferentes, o Arquivo Público do Estado ( APES ) e alunos do Curso de História da UFS interessaram-se por documentos sobre a epidemia de cólera em Sergipe no século XIX. Enquanto estes se depararam com documentos esparsos no arquivo do Programa de Documentação e Pesquisa Histórica ( PDPH ), nas tarefas da disciplina Introdução à História, o APES trabalhou com alunos de 1º e 2º graus, participantes do Projeto Arquivo-Escola, realizando exposições sobre o mesmo tema. Neste artigo, são apresentadas algumas considerações resultantes do trabalho que num dado momento se tornou conjunto, pela presença dos alunos de História no APES, em busca de dados que os fizessem entender e situa o material encontrado no PDPH.
            Desde logo é necessário assinalar que o pequeno acervo do PDPH é um conjunto de cópias mecânicas ( xerox e microfilmes ), constituídos a partir de busca realizada no Arquivo Nacional, na década de 70, dentro de Projeto de Levantamento das Fontes Primárias da História de Sergipe. Em sua maioria são os originais da Correspondência do Governo de Sergipe com os Ministérios. Nestes documentos a cólera aparece indiretamente, a propósito de assuntos de administração, segurança ou justiça. Já na documentação do APES, que não tem os limites daquela do PDPH, selecionou-se um corpus significativo da Correspondência interna, recebida pelo Governo Provincial, que trata diretamente da epidemia em seu aspecto mais visível: Mapas enviados pelos párocos com a estatística das vítimas; Relatórios médicos contendo informações sobre a progressão da doença e instruções profiláticas, Correspondência das Câmaras Municipais solicitando medidas preventivas ou providência para enfrentar a epidemia.
            Já se disse que a história de uma coletividade se confunde, algumas vezes, com a história de suas epidemias ( GRMEK, 1991: 50-55 ). Mas o olhar do historiador sobre a doença não é o olhar do médico. A ele interessa menos uma explicação biológica das causar da epidemia e mais a resposta à questão: por que uma epidemia se manifesta num momento preciso da história de uma comunidade? Mirko Grmek, professor de História da Medicina e especialista em AIDS, considera: “ Os hábitos sociais têm sem dúvida um efeito decisivo sobre o começo e as conseqüências das epidemias. ( ...) é necessário um certo número de condições sociais para que a epidemia tome corpo” ( Idem: 53). A cólera, por exemplo, que aparece na história apenas no século XIX, está relacionada com a conquista britânica da Índia, as guerras coloniais, os movimentos de população que disto resultaram. No século XIX, cinco pandemias de cólera correram, a partir da Índia, entre 1817 e 1896. Da terceira (1846 – 1862) destas pandemias são as notícias coletadas aqui, por ter atingido a Província de Sergipe em dois momentos distintos, em 1855 e em 1862 – 1863.
            Os Mapas e Relatórios mostraram-se mais completos em relação ao surto de 1862 e 1863. Ainda que preliminarmente, é possível estabelecer certa comparação entre os dois surtos epidêmicos. O de 1865 foi uma grande tragédia. Numa população calculada por MOTT (1986) em 132.000 habitantes para 1854, dos quais 100.192 livres e 32.448 escravos, os cálculos da mortalidade chegam a 30.000 pessoas, portanto em torno de 30% da população. É verdade que não se registrou, apesar disso, um recuo populacional, pois, como explica SILVA (1981), índices de natalidade bastante altos teriam mantido as cifras demográficas. Em 1856, MOTT calcula a população em 134.124 habitantes, 101.383 livres e 32.741 escravos. A mortalidade era principalmente infantil, mas os documentos do período destacam as mortes de juízes, advogados, de pelo menos 18 padres e de Comandantes de Batalhões da Guarda Nacional, que dá mostras de grande desorganização no final da epidemia. Interessante é que tais mortes causaram surpresa, uma vez que a expectativa, no início do surto, era de que, como narra um documento, “ a epidemia do cólera morbus só acometeria ( em Laranjeiras )a gente pobre e escravos ( ...)”[1]. Laranjeiras, importante centro comercial escoador da produção do açúcar na zona da Cotinguiba, teria contado 4.000 vítimas fatais da cólera no surto de 1855.
            O ano da mudança da capital de São Cristóvão para Aracaju (1855) foi crucial. Era a troca de um núcleo urbano com de 1.500 habitantes, por um “ povoado semi-desértico” ( NUNES, 1984:90). Aracaju era, porém, um símbolo: a nova capital deveria representar um Sergipe que procurava acertar o passo com a onda de modernização que se estabeleci no Império a partir de meados do século. Tudo nela estava por fazer e seria feito segundo um conceito vanguardista de urbanização. Mas, como diz Calasans, “pobre cidade do Aracaju, nos dias tristes e agitados de 1855!“ (CALASANS, 1992:83). Impaludismo e tifo castigaram os seus habitantes em febres constantes, que chegaram a ser chamadas “febres do Aracaju”. A cólera, embora não a tivesse atingido em massa, embaraço os primeiros meses de vida da cidade. A transferência de repartições e funcionários públicos, obrigatória, terminou sendo morosa e difícil. Os resistentes, com ou sem razão, terminaram justificando a posição de não se mudarem para a nova capital, por entraves causados pela epidemia. Assim, o Juiz dos Feitos da Fazenda justifica diante do Imperador que o mandara repreender, a negativa em transferir os serviços do Cartório de São Cristóvão para Aracaju, porque encontrava-se “à testa de um ponto sanitário, que por minha lembrança e esforços fora montado sem outras vistas da minha parte mais do que socorrer a humanidade aflita”. E acrescentava: “ os estragos do cólera que foram terríveis em toda a Província no mês de novembro, não sendo menos em dezembro, se não impossibilitaram pelo menos muito dificultaram as comunicações até mesmo com esta capital, apesar dos recursos do Governo da Província, o qual, tendo de remeter medicamentos para alguns pontos, dizia às autoridades locais que mandassem portadores recebê-los por não ter quem os conduzisse...” [2].
Em 1855 a epidemia veio do Sul para o Norte. Ainda em setembro o Governo alertava às Câmaras Municipais que, como a de São Cristóvão, ficavam cientes do “ futuro cheio de calamidades que nos ameaça se porventura se houver de manifestar nesta Província a epidemia que de presente vai vitimando os habitantes da Cidade da Bahia[3]. A mesma Câmara pede ao Presidente da Província recursos para prevenir-se: transferência do matadouro para lugar mais afastado da cidade, cuidado cm a limpeza da praça do mercado, caiação das casas dos pobres, limpeza da Cadeia e redução da população carcerária, construção de local adequado ao comércio de peixes. Para remover “ tantos condutores de infecção” [4], a Câmara diz não dispor de recursos, mas o Governo Provincial se diz também incapaz de socorrê-la.
Já o surto de 1862 aparece ter encontrado a administração provincial mais preparada no sentido de cobrir informações, de determinar instruções preventivas. Aqui a interferência do saber médico é mais evidente, nos Relatórios e recomendações preventivas e profiláticas. A moléstia atingia Sergipe agora em sentido contrário, pois se anunciava em Maceió, atingindo Propriá, num movimento considerado “ contrário à rota dos ventos e condições atmosféricas”. Os documentos revelam o estágio de conhecimento da trajetória da epidemia: período de duração em cada município, vítimas atingidas, fatais e não-fatais, rota geográfica do surto, meios de transmissão, tudo faz parte do Relatório do Inspetor de Saúde Pública, Francisco Sabino Coelho de Sampaio. Por este documento, precioso na minúcia e conceituação médica do fenômeno, vê-se que os efeitos do segundo surto são menores. Agora, para uma população de 200.000 habitantes, 5.300 é a mortalidade calculada. Laranjeiras, Maroim e Rosário são os locais mais atingidos e fontes de infecção de outras localidades, pela fuga de seus habitantes, muitos dos quais morriam de cólera mal chegavam ao novo destino.
A que se atribui,  entretanto, a menor mortalidade no surto de 1862 / 1863? Os números não devem induzir a conclusões sobre a melhoria das condições sanitárias. O próprio Inspetor de Saúde chama a atenção para isso: “ nada teve concorrido para o melhoramento das condições salubres dessas localidades nesse intervalo de tempo ( ... )”. Daí conclui o médico que os resultados se explicam pela “ calma e resignação, que presidiram desta vez ao espírito da população, da prontidão, acerto e oportunidade dos socorros públicos, do bom senso, que igualmente os presidiu, do cuidado que teve geralmente cada indivíduo de manifestar seus padecimentos tanto que os pressentia, e de buscar combate-los convenientemente, etc,”.[5] “ Calma e resignação “ já deviam estar marcando uma população acostumada a conviver com a doença e com a morte. É fato que no mesmo período as mortes por outras epidemias às vezes superavam as motivadas pela cólera, segundo os diagnósticos. A febre amarela, por exemplo, vitimou em Simão Dias, no mesmo período, 235 pessoas, enquanto 120 morreram de cólera, Febre amarela, disenterias inespecíficas, sarampo, varíola, castigavam a população ao mesmo tempo, e podiam esconder diagnósticos de cólera. A descrição de Aracaju de 1863 pode ilustrar essa situação:
“ No Aracaju, capital da província, onde mais ou menos intensamente gira quase sempre alguma epidemia, onde seus habitantes, principalmente os mais expostos a privações e indigências, mais ou menos sofrem constantemente, isto por circunstâncias locais, que subsistem e cuja indicação tenho sempre reproduzido nos últimos relatórios, que mais parecem-me consentânes a modifica-las, e mesmo aniquilar algumas delas, como sejam principalmente o encanamento de boa água potável, que abasteça a cidade dela completamente privada, o calçamento das suas ruas, a plantação aproximada de arvoredos, que produzam bastantes copa, pela rua que corre o litoral, e o aterro de diversas baixas e buracos, que servem de depósito prolongado às enxurradas das águas pluviais, e do que tudo as vantagens, quando mesmo se não deixassem facilmente compreender a qualquer espírito, acham-se com clareza explicadas naqueles relatórios, no Aracaju, repito, reinaram desde fins de janeiro e por todo o fevereiro bronquites, corisas, alguns pleurites e pneumonias, a isto adicionando-se, em meados de fevereiro irritações do tubo digestivo intestinal manifestadas por cólicas, defecções alvinas, etc”.[6]
            A documentação aqui apresentada pode dar uma mostra do que em alguma medida foram os efeitos da epidemia na sociedade sergipana da época, agrária, escravista, açucareira. Estudando o tráfico inter e intra-provincial de escravos no Nordeste açucareiro, Passos Subrinho questiona o volume da participação de Sergipe no tráfico interprovincial, geralmente tido como um dos elementos que mais desgastou o contingente de população escrava na Província, e faz, a propósito, a seguinte afirmação: “ ... um fator deve ter abalado a estrutura  patrimonial de muitos proprietários de escravos – a epidemia de cólera morbus-, que atingiu a Província a partir de outubro de 1855 e dizimou, somente na região Sul de Sergipe mais de 4.000 escravos” ( SUBRINHO, 1989, v.IV ).
            “Calma e resignação” nas palavras do Inspetor de Saúde, podem indicar o recuo ou o controle do medo, apontando para uma explicação que busca raízes no terreno do imaginário coletivo. DELUMEAU, na sua História do Medo no Ocidente, listando a peste como um dos medos da maioria, identifica nas mentalidades das sociedades européias desde a peste negra do século XIV, comportamentos que podem ser identificados na sociedade sergipana dos “tempos de cólera”. Assim, mostra que a chegada da epidemia infunde um grande medo e uma sensação de impotência, que resultam em comportamentos elencados, a grandes traços, como: a) a recusa das palavras; b) as fugas; c) desestruturação dos elementos que construíam o cotidiano; d) rompimento das relações pessoais; e) abandono dos costumes mais enraizados no inconsciente coletivo; f) ausência de projetos; g) busca de culpados (DELUMEAU, 1991).
            Os documentos nomeiam a epidemia como “flagelo”, “cruento e assolador inimigo”, “hediondo e terrível flagelo”, “o visitante asiático”, “cruel e astuto inimigo”, “mortífero e caprichoso contágio”. Todos esses qualificativos substituem o nome “cólera” com freqüência. Da mesma forma há relatos de fugas. Autoridades, como o juiz de Laranjeira, que no surto de 1855 foi acusado de encerrar-se no engenho da família sem ir à cidade, deixando-a sem os serviços de justiça; famílias inteiras, que assustadas, fugiam dos focos de cólera, difundindo a epidemia para outras localidades. Conforme DELUMEAU, “o tempo de peste é o da solidão forçada”: os documentos falam do vazio das cidades, do paradeiro do comércio, da tristeza das ruas. Não mais as festas, visitas, os encontros. Tudo é medo, as pessoas se escondem e, principalmente, a morte se despersonaliza. O historiador do medo mostra como na peste nada distingue a morte dos homens da dos animais: as fontes relatam “o desregramento dos enterros”, realizados em malhadas de mandioca, nos quintais, sempre às escondidas, fugindo à estatística governamental e espalhando ainda mais a epidemia. Na ausência de projetos, além do de aguardar a própria sorte ou fugir, buscam-se culpados. Até mesmo um relatório médico refere-se à cólera como “flagelo que os céus em sua justiça arrojaram à terra para punir-nos” [7].
            Finalmente, a documentação pode conduzir a um estudo sobre o saber médico no período. É interessante ver ao lado de conceitos como “contágio” e “infecção”, médicos falando em “invasão”, “assalto”, “visita” e tratarem o cólera como um ser dotado de consciência, mau, cruel, desumano, capaz de “sanha tão desabrida” [8]. A vila de Rosário, por exemplo, é vista pelo médico Inspetor da Saúde Pública como “um dos pontos que o cólera-morbus reservou para nele manifestar-se de terrível catadura e saciar-se de vítimas” [9]. O olhar do historiador pode fazê-lo perscrutar, através das pistas encontradas nas fontes, as mais variadas situações, sensações, sentimentos. O objetivo é entender melhor as manifestações humanas e talvez compreender a permanência de atitudes que não correspondem, aparentemente, ao que se espera de uma sociedade urbana, medicalizada, informada, que de certo modo ainda se defronta com epidemias com a imprevidência de quem aguardasse uma “visita”, “invasão” ou “assalto”.





[1]-Barão de Maroim. Ofício ao Ministro da Justiça. Aracaju, 17/12/1865. Cópia do acervo do PDPH/UFS.
[2]- Antonio Joaquim da Silva Gomes. Correspondência ao Imperador Pedro II. Aracaju, 14/3/1856. Cópia do acervo do PDPH/UFS.
[3]-Inácio de Paula Madureira e outros. Ofício da Câmara de São Cristóvão ao Vice-Presidente de Sergipe. São Cristóvão, 19/9/1855. CM, APES.
[4] - Idem.
[5] - Relatório do Inspetor da Saúde Pública Dr. Francisco Sabino C. de Sampaio. Aracaju, 1864, p.10
[6] - Idem.
[7] - Relatório do Inspetor da Saúde Pública, cit., p.2
[8] - Idem, p.6
[9] - Idem, ibidem, p.8

Bibliografia

CALASANS, J. Aracaju e outros temas sergipanos. Aracaju, Fundesc, 1992
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente 1300-1800. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
GRMEK, Mirko, Sida: Histoire d´une épidémie. L´Hisoire, Paris, nº 150, dez. 1991 ( Entrevista de Daniel Bermond ).
NUNES, M.T. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro. Paz e Terra: Aracaju, Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe /  Universidade Federal de Sergipe, 1984.
REVEL, J. e PETER, J.P. O corpo: o homem e doente e sua história,  in Le Goff, J. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.141-159.
SILVA, F.C.T.da. Camponeses e Criadores na formação social da miséria – Porto da Folha no sertão do São Francisco ( 1820-1920). Niterói, 1981 ( Dissertação apresentada ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Mimeo).
SUBRINHO, J.M.dos Passos. A transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Nordeste açucareiro. Algumas reflexões a partir do caso de Sergipe. Anais do XVII Encontro Nacional de Economia. Fortaleza, 1989, v.IV,


( * ) Publicado originalmente no Cadernos UFS – História, v.2 – n.3, Editora UFS, julho / dez, 1996

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Fundamentos Sociais do Racismo

Milton Barboza da Silva
Conferência proferida na Casa de Cultura.
2010



                A proposta de discutir as fundamentações sociais do racismo, em suas múltiplas dimensões, pareceu-me apropriada, não só para assinalar a passagem do Dia Estadual de Luta da Consciência Negra ( 20 de novembro, Lei Estadual 5.497 de 23 de dezembro de 2004 ), mas, sobretudo, por estamos vivendo um momento de profundas transformações no campo do pensamento, das ciências e, sobretudo, no agir humano. Assim, esse ciclo de debates vem se sintonizar com as angústias e preocupações que se assemelham em diversos cantos do planeta.

                Foi o final do século ( XX ), ou mesmo de milênio, argumentariam algumas pessoas, que induziu a uma reflexão sobre os temas que temos discutido nesse encontro, mas que, logo ao alvorecer do novo milênio, já estaremos esquecidos dessas problemáticas: o preconceito, a xenofobia, a exclusão, entre outras. Enganam-se. Seria verdadeira, tal argumentação, se a motivação para essas reflexões e debates não fosse resultante de uma profunda e arraigada crise de fundamentação; é uma crise cujo enraizamento remonta a séculos de alimentação de um modelo que se esgota, que se tornou estéreis. Assim, não tem como passar por essa crise, sem que não tenhamos algum envolvimento, sob pena de perdermos o referencial que se está construindo  por entre os escombros que vão ficando pelo caminho.
              Ontem, o jornalista Luiz Antonio Barreto lembrava o caráter contraditório da fundamentação racista, hoje pretendo, seguindo uma linha própria de raciocínio, mostrar o quão contraditório é essa fundamentação, a base de sustentação do racismo; mostrar seu caráter de esgotamento.
                Assim, pensando em partir, vamos lembrar que a palavra racismo, no singular, não expressa o conteúdo sócio-antropológico que ela encerra, pois que não temos um tipo ideal, aos moldes de Weber, que pudesse referenciar os mais diversos tipos de racismos desenvolvidos ao longo do processo histórico. Por conseguinte, temos que pensar em racismos. É assim, no plural, pois não temos um modelo único para o racismo, nem tampouco, o racismo é uma categoria exclusiva de um povo, de um grupo, de uma etnia ou de uma opção. Dessa forma, fico bem à vontade, não só por não ser sociologicamente  possível, mas também, por conhecer o pensamento do autor da proposta desse Ciclo de Debates, o Severo D´Acelino, e sei que quando ele propõe discutir o racismo, não está pensando apenas na questão negra, mas na diversidade que encerra a palavra e o significado dos racismos.
                De início, vamos compreender a significação dos racismos. Essa palavra designa uma crença cujas características fundamentais são as seguintes:
             - crer que os seres humanos se dividem, fundamentalmente, em raças. E, como conseqüência, atribui ao fator raça uma importância antropológica decisiva;
      - atribuir às raças características imutáveis, crendo que os caracteres transmitidos hereditariamente não se restringem apenas aos traços físicos, mas também certas atitudes psicológicas e aptidões, que são as que geram as diferenças culturais visíveis;
                - crêem que existe uma hierarquia entre as raças, sendo algumas superiores às outras;
                - entender a mistura de raças como um processo de degeneração das raças “superiores”.
                Como podemos perceber, o racismo está montado em fundamentos que não se sustentam - em que pese ter quem o defenda -, quase sempre, por interesses ideológicos ou econômicos, ou ambos. Todo esse equívoco tem seu nascedouro em uma compreensão incorreta do conceito de raça, que não passa de um estereótipo cultural. O conceito de raça se formou a partir certos traços externos – cor da pele, características do pelo, traços faciais, constituição anatômica e craniana -, esses traços foram demasiadamente valorizados pelos cientistas do século XIX, e parte do século XX. A esses traços externos, sobrepuseram predisposições intelectuais e espirituais. Portanto, o racismo é produto de uma improcedente mistura de fatores externos e predisposições internas.
               Mas, afinal, existe raça ou não existe? Apesar de não haver um acordo por parte dos cientistas quanto a essa questão, existe ao menos um consenso: o racismo é um perigoso desvio da questão.
                O racismo, como sabemos, tem sua origem na xenofobia, esse é o medo do estranho, do que é desconhecido. Assim, colocado dessa forma, esse medo do estranho, seria quase natural. Mas, antes que alguns apressados saiam a dizer que estou defendendo a tese da quase naturalidade da xenofobia, adianto que, esse sentimento é inato nos animais, mas quase inato nos seres humanos, nos grupos sociais por esses constituídos, incluindo-se ai as nações. Em uma palavra, a xenofobia é uma desconfiança instintiva para o estranho ao grupo, percebido a priori, de forma quase mecânica, como um inimigo potencial. Essa xenofobia, sem dúvidas, tem haver com os instintos territoriais, mas não é, com certeza, equivalente ao racismo, pois esse não é instintivo, senão que é uma teoria.
               Portanto, aqui, creio ter desconstruído a tese segundo a qual o racismo é natural e instintivo, pois entre a reação ao estranho e a formulação de teorias racistas vai um longo trecho.
       
          Linné ( 1707 – 1778 ) e o conde de Buffon ( 1707 -  1788 ), catalogaram os seres vivos em raças, gêneros, famílias, etc. Os seres humanos não escaparam a essa catalogação. Não que esses dois tivessem se preocupado com os humanos, mas seus sucessores terminaram por criar um verdadeiro catálogo das raças  humanas.
   
             Pensando ser essa a origem do racismo, enquanto um fenômeno tipicamente histórico e cultural,  podemos destacar alguns dos responsáveis pela elaboração teórica dessa aberração sociológica: o sueco Karl Von
              À medida que o pensamento teológico ia sendo substituído pelo científico/racionalista, foram aparecendo cientistas que explicaram diferentemente o movimento humano. Por exemplo, os alemães Carl Carus ( 1789 – 1869 ) e Gustav Klem ( 1762 – 1822 ), estão entre os primeiros que introduzem o fator raça para interpretar a evolução das culturas. Quase, simultaneamente, o sueco Retzius ( 1842 – 1919 ), introduz o primeiro método científico para classificar as raças.
            Todas essas idéias racistas, ou pré-racistas, não eram difundidas apenas por cientistas isolados, mas eles contavam com o apoio de sociedades organizadas, a exemplo da Sociedade Etnológica de Paris ( 1839 ); a Sociedade Etnológica de Londres ( 1843 ). Nesse contexto, formulou-se a primeira teoria explicitamente racista, desenvolvida pelo francês Joseph Arthur, Conde de Gobineau ( 1816 – 1882 ), em seu célebre ensaio sobre as Desigualdades Humanas. Sintetizando ao máximo seu pensamento, temos:
                - existem raças superiores, dominantes, que não são senão ramos de uma mesma família, a ariana, que dão vida as formas mais brilhantes de cultura e as nações mais poderosas;
                - a decadência dessas nações e dessas culturas se deve ao fato da mestiçagem;
                - a História não é outra coisa senão um campo de batalha entre as raças.
                As teorias de Gobineau se inscreveram na herança intelectual do iluminismo, por mais estranho que pareça essa afirmação. Observadores sagazes, como George L. Mosse, não hesitaram em perceber essa relação, diz: “ é o lado obscuro do iluminismo”.
                A Gobineau  sucedeu um desfile de pensadores, não menos famosos, que contribuíram para a fundamentação teórica do racismo. Ninguém menos do que Friedrich Nietzsche, em sua “moral dos senhores”, oposta a moral dos escravos, engajou-se nas teses de Gobineau, não é a toa que alguns de seus detratores o coloca como “apóstolo do racismo”. O mesmo podemos dizer de Wagner, o mundo germânico idealizado em suas óperas está por demais sintonizado ao pensamento de Gobineau, aliás, seu amigo pessoal. Muito já se falou também de Charles Darwin, mas a verdade é que uma de suas heranças, o darwinismo social, é profundamente racista, sobretudo quando influencia o também britânico Francis Galton, cuja obra Genes Hereditários ( 1869 ), fundamentou a doutrina da Eugenia, facilmente aplicável aos interesses racistas.
                Agora, o campeão mesmo das doutrinas e teorias racista foi o liberalismo econômico. Como diz Mosse: “ temos que ter em conta que as idéias de superioridade racial não estavam, necessariamente, ligadas ao nacionalismo, mas que poderiam ser utilizada para apoiar as qualidades do liberalismo e da iniciativa privada... “.
                O racismo é filho direto das idéias positivas do século XIX. O que era apenas algumas idéias soltas, com o advento do pensamento positivista, sobretudo com o aparecimento da obra do britânico Houston S. Chamberlain, Os fundamentos do Século XX, o racismo dá um salto qualitativo, pois conferiu a este uma fundamentação filosófica.
                Bem, aparentemente, o racismo é um predicativo da cultura alemã, mas não é bem verdade, a Inglaterra, a França e os Estados Unidos se inscrevem como países de fortes tendências racistas.
                Mas, afinal, haveria sustentação para essa tese, a tese da superioridade branca? É claro que não. Essa hipótese não se sustenta, bastava ter se perguntado: se a raça branca era superior, como explicar que durante milênios a China manteve a vanguarda cultural, técnica e científica? Se se atribui aos arianos todo o gênio criativo, só alguém dotado de um cérebro de formiga poderia atribuir a Grande Muralha, as Pirâmides do Egito ou do Yucatan, ao gênio criador dos brancos, Se os germanos eram povos superiores, como explicar que durante séculos não passaram de povos rústicos que habitavam choças, eram analfabetos, etc.
                Por fim, ironicamente, o século XX, deu-nos uma rara oportunidade de verificarmos a falácia das doutrinas racistas. Digo ironicamente, pois foi nada mais nada menos que o marxismo quem terminou por nos ensinar que nenhuma doutrina monolítica, a exemplo do racismo e dele mesmo, teria supremacia sobre a história. Assim, a proximidade entre o pensamento de Bobineau e o de Marx, em um aspecto, o histórico, é tão curta quanto a distância entre meus dedos e minhas mãos. Racismo e marxismo se aproximaram tanto, no sujeito da história, que o esgotamento dos dois foi inevitável.
                Afortunadamente, vivemos em um mundo onde as idéias, essas sim, são globais e interdependentes, apesar disso, ainda temos pessoas que não creem na interculturalidade e sim em pisotear o direito fundamental da igualdade entre as pessoas. Assim, o racismo resulta em uma estupidez e a xenofobia, descabida. Existe um poema, cuja autoria não consegui detectar, que transcrevo para finalizar:
                Querido irmão branco:
                               Quando nasci era negro,
                               Quando cresci era negro,
                               Quando tomo sol, sou negro,
                               Quando tenho medo, sou negro,
Quando tenho frio, sou negro,
Quando estou doente, sou negro.

Enquanto que você, homem branco:

Quando nasceste, eras rosa,
Quando crescestes, eras branco,
Quando tomas sol, ficas vermelho,
Quando tendes frio, ficas azul,
Quando tendes medo, ficas verde,
Quando estás doente, ficas amarelo,
Quando morres, serás cinzas...


Quem é de cor?